Mitomania: qual a verdade sobre a mentira?

Os mitomaníacos não vivem bem em círculos sociais, porque estão em realidade imaginária,  diz a psicoterapia
Inventar fatos ou falsear histórias pode ganhar traços de transtorno psicológico quando a mentira passa a ser algo compulsivo. Trata-se de um quadro clínico chamado mitomania - uma tendência que o indivíduo tem de falar coisas que não têm um fundamento real
Socialmente vista muitas vezes como uma falha de comportamento, a mentira tem um dia só para si: o 1º de abril. Na data, há quem brinque sobre o costume usado por muitos para se livrar de alguma punição ou responsabilidade, mas há casos em que o que parece simples torna-se um problema. A mentira pode ganhar traços de transtorno psicológico quando passa a ser algo compulsivo, em um quadro clínico intitulado mitomania - uma tendência que o indivíduo tem de falar coisas que não têm um fundamento real. “A pessoa conta narrativas e histórias que não são verdadeiras”, detalha o psicoterapeuta e professor universitário Flávio Romero. A psicologia classifica a mentira como uma necessidade de uma pessoa contar uma inverdade para obter um ganho.

 “Ninguém mente se não for para ter um ganho. A mentira é uma fragilidade humana. Existe uma necessidade de ser aceito e, para evitar frustrações, um recurso usado é mentir”, explica.Por viver em uma sociedade marcada por laços de confiança, as pessoas buscam estar ao lado de quem lhes proporcionem conforto e segurança. Os mitomaníacos tendem a sofrer isolamento, por serem pegos constantemente em mentiras e colocados em xeque diante da verdade. “Os mitomaníacos não vivem bem em círculos sociais, porque estão em uma realidade imaginária, que não corresponde ao dado real. Quando passam a ser identificados como mentirosos, são excluídos dos grupos”, disse Romero. A mitomania indica, geralmente, um transtorno psicológico maior. Por isso é pouco comum pacientes com um diagnóstico fechado do distúrbio, pontua o professor. “A maioria é neurótica, pois vive em conflitos, porém, de modo muito discreto. Entretanto, alguns conflitos podem desencadear um descontrole ou um desequilíbrio e se transformar em uma angústia. É como se a mentira viesse tamponar essa sensação”, discorre o professor Flávio. 
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 25 milhões de pessoas, cerca de 12% da população brasileira, sofrem com males mentais. Os mais conhecidos, como síndrome do pânico, esquizofrenia, hipocondria, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e bipolaridade, são priorizados nos atendimentos hospitalares. Entretanto, os mais comuns, diz a Associação Brasileira de Psiquiatria, são aqueles ligados à compulsão, à depressão e à ansiedade. A compulsividade - que em outras situações pode ter como objetos a alimentação e a sexualidade, por exemplo - está relacionada à mitomania. “O sujeito tem um comportamento compulsivo, de repetir essa mentira”, acrescenta Romero. Identificação e tratamento Entre as principais características de um mitomaníaco estão o fato de necessitar ser o centro das atenções, possuir frustrações reprimidas e serem pessoas manipulativas, inseguras e transtornadas. 

Um mitomaníaco pode ser identificado por aqueles que o cercam através da observação dos sintomas do transtorno. Ao serem pegos contando uma farsa, por exemplo, podem desenvolver uma reação violenta. É ainda alguém frágil e escorregadio, sem um discurso concreto e claro e sem controle sobre suas invenções. O estudante Matheus Felipe, de 18 anos, conta que uma prima apresenta a característica de mentira compulsiva e prejudica seus familiares e amigos, que têm vergonha dela. “Uma vez ela disse a todo mundo que não estava grávida e sustentou isso por muito tempo. A mentira chegou a tanto que queria tirar o filho, por dizer que não queria ser mãe”, disse. “Outra vez enganou a gente dizendo que tinham roubado o dinheiro que ia usar para pagar uma conta, mas na verdade ela gastou com outras coisas”, acrescentou. 

O estudante diz que a família já tentou ajudar a prima, mas ela não quer e prefere continuar mentindo. Os mitomaníacos não conseguem deixar de ser assim, porque há algo mais forte que faz com que tenham esse comportamento. A principal forma de tratamento para a mitomania é a psicoterapia, pois permitirá identificar a origem do distúrbio e como mudar o quadro. “O sujeito precisa entrar em um universo real para que possa encarar as relações sociais de um modo claro e preciso, sem recorrer ao universo fantasioso”, completa Romero.
A mitomania não deve ser confundida com casos patológicos ligados a mentiras mais graves, como a sociopatia. “Às vezes, quando alguém quer conquistar uma pessoa, diz que é de determinada profissão, que viajou o mundo e tem muitos bens e começa a criar um universo não real. Em algum momento essa mentira não vai mais ser sustentada e surgirá um conflito”, exemplifica o psiquiatra. Casos com o dos canibais de Garanhuns - como ficou conhecido o episódio das três pessoas que vendiam salgados de carne humana - não estão relacionados à mitomania, pois adentram à dimensão da perversão. Os mitomaníacos, por sua vez, não buscam prejudicar ninguém, apenas querem ganhos secundários para si.

   Na infância

Os enganos são mais aceitáveis na fase da infância, por ser um período de formação do caráter e da subjetividade. A conduta mentirosa pode começar a afetar as crianças a partir dos sete ou oito anos, durante o início do processo de socialização. Antes dessa faixa etária, a mentira é inserida no universo da imaginação infantil. “Os pais têm o papel de controlar, punir e orientar que esta não é a conduta adequada e devem contribuir para formar o caráter da criança. Nessa fase o indivíduo começa a ser um sujeito político, de fala e de linguagem, que tem um lugar de verdade”, explica Flávio Romero. Mentira comum contada por crianças é aquela usada como forma de evitar algum tipo de punição e evitar frustrações, principalmente com os pais e na escola. 

“A criança não conta a verdade quando tem uma briga na escola, por exemplo. Ela não quer contar e acaba mentindo. Os pais precisam podar esse comportamento da mentira, para que o adulto possa manter uma conduta íntegra e honesta”, complementa o professor. A professora do ensino fundamental Vera Calvi relata situações comuns vivenciadas em salas de aula com os alunos. “Eles inventam coisas corriqueiras como ‘dormi na casa do meu pai e esqueci o material’, ou ‘minha secretária estava lá em casa e guardou meu material e eu não sei onde está’. Contam sempre que nunca é culpa deles, mas de um terceiro”, diz. Essa mentira é, segundo Vera, artifício para evitar castigos e maneiras de fugir de responsabilidades. “Quando jogam a culpa para outra pessoa, eles buscam se proteger de punições, como perder nota”, exemplifica. 

“Sempre dão um jeito. ‘Meu irmãozinho riscou’, ‘meu cachorro fez xixi’. São coisas bem absurdas, é até engraçado”, acrescenta Vera, que afirma buscar corrigir os estudantes para ajudá-los na formação humana. “Eu falo para eles que é melhor falar sempre a verdade. É preciso cumprir as obrigações e jogar a culpa nos outros é, de certa forma, uma falta de responsabilidade e até de método e disciplina de estudo”, afirma a professora. O caráter é formado nessa faixa etária e ajudar as crianças e adolescentes é fundamental, finaliza.
Mitomania
Crédito: Arte/Folha de Pernambuco

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